
Continuamos em: Infinitoatlantico.blogspot.com
O teu desassombro está em ti -Sebastião Alba
"Two Callas" - Imogem Cunningham
Escrevo para o vento
contra o odioso silêncio
os seus bichos milenares
e o vazio que ganha contornos de branca loucura
uma sanguessuga obscura e profunda
dentro das imagens incendiadas
onde recordo o rosto que nunca conheci
as pessoas solares afastaram-se de mim
as minhas feridas brilham
como vibrantes libélulas
por cima das águas estremecidas pela insónia
deixei de as lamber
porque sou um soldado com uma só dor original
erguida da fundura do meu nome
algo que não podes curar com o teu sexo
e o teu cheiro de laranjeira marinha
que se passa aqui?
devo carregar a noite nos ombros e nos olhos
devo ser fiel aos meus sentidos e sentir
abandonar e abandonar-me
ressuscitar morrendo
por dentro da Casa da beleza
I N U T I L
N
U
T
I
L
Esta cabeça fonética com caixas de musica
luzes precariamente equilibradas na linha do horizonte
venenos acessíveis a poucos
este mundo ligado ás artérias das madrugadas
aos compassos do poema que abre e fecha a paixão
as flores internas
acendem esta boca repentina de astros
estas mãos torrenciais de azul
esta pele levantada para que vejas a carne combustível
sobre o amplexo perfeito do sonho
um trompete arrancada à raiz da lua
transbordantes desastres pressentidos
na fluidez fotográfica dos corpos
este quarto cheio de ignorância de mim próprio
este coração que bate para trás
devora a memória que diz o gelo
de todas as noites em que não te encontrei
de todos os dias em que passas
e me deixas à chuva ardendo por uma palavra
não quero saber de mim
já não me importo
não tenho medo do eclipse
que alastra pelos dedos alucinados
sobe à cabeça esgotada pelo silencio
o nervo da solidão agreste pensa
essa mulher de pedra esmagada contra a eternidade
sinto a voz que minha Mãe me deu
ténue vaga
aparição
longínqua espuma movimentando-se
na pálpebra que fecha
a luz que me habitava
antes de me precipitar
que se passa?
não estou triste
não tenho ambições
guardo as coisas que importam
debaixo da língua
um lugar para a tua boca devorar
quando quiser.
Edward weston - "Clouds"
Senhora fantasma
Senhora de notas musicais divididas pelo vento
que translúcido passa na pele dos crentes
Senhora fantasma dentro dos meus livros
nas folhas diárias escritas pelos dedos desamparados
Senhora fantasma estou ao telefone
e todas as extensões estão ocupadas
cizem-me que serei atendido o mais breve possível
mas hoje é sexta á tarde
é assim desde que nasci
pleno de silêncio frágil e perturbado
das palavras acordadas pelos dias despovoados
dilatados por penumbras naufragadas
feridas antigas e futuras
pássaros pressentidos pelo fim do Inverno
queimados pela matéria solar de suas asas
senhora branca livre
aqui estou sentado com o meu casaco de ilusões
e o velho lápis à trela como um cão
não te espero nem te obedeço
sou apenas um peixe
na madrugada das águas destruídas pelo entardecer
um corpo onda espalhado na sonolência do areal
uma gota de chuva que trazes no teu olhar de açúcar
quando te lembras de mim.
Mark Tobey
Estar descalço na noite
tomá-la pelo braço
trabalhá-la
numa visão para o sublime do sonho
por mais que desvie os olhos
a visão acrescenta-se ao iluminar dos objectos
dá-lhes forma e nomes e boca para o seu dizer
o encantamento pleno do sensível
e eu estou entre eles
no meio deles
num espaço/industria de absoluto rigor
estou na fome vertiginosa do pensar
sou uma cabeça poema
um coração
uma laranja com os seus gomos paradoxais
uma orquestra utópica
que interpreta com os olhos da liberdade os seus poemas
instrumentos movimentados pela mão que escolhe o sentido
uma cascata de águas límpidas
um caminho para a palavra
de nós a claridade de um movimento digno
uma paixão arlequim
um trompe d`oeil
um homem desmedido dentro do significar-se
na agudeza do dom
volto sempre a ti
volto da luz que sobrou dos dias
ao que resta da devastação
e a devastação não é não estares
a devastação é não existires.
Tom - "Nighthawks at the Dinner"
Não foste breve na minha noite
nem tangível como as faúlhas brancas do poema
por exemplo o abismo onde se escorrega
é o pássaro das coisas intensas como a boca do vento
no olhar vadio da espuma de uma vaga
Sou estrangeiro à vulgar felicidade dos acrobatas
mas torço as palavras ao firmamento
e danço generalizadamente mesmo quando não escrevo
mostro as mãos quotidianas
orquídeas em flor abertas em lençol sobre a terra peixe
ou nuvens sentadas á porta dos instantes
pequenos milagres
assombrações para um corpo
que alguém tem de encontrar na posição correcta
uma janela como um coração
e um muralha de musica para o abrir e fechar sem pensar nisso
nada mudou sobre os arcanos do tempo
na saliva com que se mata o ultimo beijo
eu vejo as ruínas do homem breve e o primeiro gato
que salta sobre os ombros da madrugada
é a única coisa decente que hoje poderá acontecer-nos.