quarta-feira, 23 de abril de 2008

Não Foste Breve Na Minha Noite



Tom - "Nighthawks at the Dinner"

Não foste breve na minha noite
nem tangível como as faúlhas brancas do poema
por exemplo o abismo onde se escorrega
é o pássaro das coisas intensas como a boca do vento
no olhar vadio da espuma de uma vaga

Sou estrangeiro à vulgar felicidade dos acrobatas
mas torço as palavras ao firmamento
e danço generalizadamente mesmo quando não escrevo
mostro as mãos quotidianas
orquídeas em flor abertas em lençol sobre a terra peixe
ou nuvens sentadas á porta dos instantes
pequenos milagres
assombrações para um corpo
que alguém tem de encontrar na posição correcta
uma janela como um coração
e um muralha de musica para o abrir e fechar sem pensar nisso
nada mudou sobre os arcanos do tempo
na saliva com que se mata o ultimo beijo
eu vejo as ruínas do homem breve e o primeiro gato
que salta sobre os ombros da madrugada
é a única coisa decente que hoje poderá acontecer-nos.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

No Bolso Esquerdo


William Blake - The Ancient Of Days

No bolso esquerdo da camisa
bate um coração encerrado nas diversas magias
do tempo com os seus grandes ganchos
transportam as memórias à flor dos olhos
águas torrenciais que percorrem a pele e esculpem o rosto
com que viajo amarrotado por dias nenhuns
os brutais intervalos lunares da melancolia
amarram-se à corda com que deambulo vagarosamente pelo sonho
mistério estrutural das coisas libertadas
no abrir e fechar das palavras
para que as imagens saltem
como os animais no principio do mundo
Eu agora sou um rio primordial que corre para a sua fonte
sou um corpo de espuma que dorme com a sua vaga
uma cintilação que em silencio espera da noite
a lucidez das flores
como um relógio preciso dentro nas veias das grandes árvores
sou um animal prudente com relâmpagos pelas unhas
tinta para dar cor aos segredos mais infimos
agora brilhamos por dentro
somos um dentro a deitar a luz para fora
um poço que jorra as incomensuráveis
lonjuras da luz roubada ás estrelas
um caminho paralelo cicatrizante e profundo
laranjas loucas com seus gomos repartidos pelos meses
uma chuva com a correcta pronuncia do meu nome
finalmente sei que o meu nome provem das nuvens
e das devastações que por meus olhos se anunciam
na absoluta claridade de um acordar.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A Noite


Malevitch - Black Square

A noite
A noite crua
A noite com pedaços de lua

Margem


Enquanto alguns ainda dormem
A aranha acende o dia com as suas patas luminosas
O dia luminoso da aranha
O dia claro e distinto
O dia cheio de canetas
Termómetros para a redução da febre dos papeis que ardem
Uma árvore a crescer do oceano
corpos celestes
barcos com a tempestade do seu precipício
As nossas mãos que fazem o trabalho desqualificado dos que pensam
Os dedos mastros que nos unem pontes invisíveis
Pontes assentes nas grandes fundações do sonho
Do voo mais alto, mais puro, mais muito
Muito mais de tudo
inclusive
O cão de olhos claros
que todos os dias encontras nalgumas esquinas da tua memória
sou eu e outros como eu
os que nunca tiveram pátria
que não a palavra margem
sombra que não fosse um abismo apontado á cabeça
uma corda para prender a noite ás lâmpadas do tempo
ao relâmpago dos lugares mais fundos mais inacessíveis
mais cortados pela Primavera que não chega a tempo
de algumas mágoas despejadas
na casa esquecida onde habitámos sentir