sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Auto quase retrato


Edward Hopper - "Nighthawks"


A musica que me acolhe ao amanhecer
é a do cheiro luminoso da tua presença
a minha fragilidade escreve-se
na penumbra que anuncia a tua partida
e no terror da ausência infinita
com que o ceifeiro negro nos ameaça a cada dia
a viagem faz-se também aqui
neste sitio onde te recebo
lençol extremo da ternura
que por vezes oculto
amarga vitória de palavras não pronunciadas
eu sou a contradição
e milhares de anos de culpa judaico-cristã
um pecado no lábio mordido pelo beijo
um silencio que espera o anjo
que nunca conheci
porque não sei o nome
que todos os dias digo incorrectamente
os amigos que partiram
e deixaram a casa em ruínas
a cidade queimada pela ausência
ascendo agora por sobre a terra
onde a luz nunca se apaga
habito na sombra estrutural
dos arquivos do tempo que nos resta
reconstruo e destruo os minutos
do que dissemos e fizemos
sou a gota que alimenta
a garganta do homem no deserto
o viajante que adormece na tua cama
e nocturno se esconde no teu corpo.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Movimento


O vento levar-nos-á
como no cinema de Kiarostami
pelas margens solares dos trigais
dourados fios dos teus cabelos crepusculares
janela colorida de promessas
sonho e sonho abraço do sonho
as cidades que de ti partem
este poema que partilho
com o cão sem dono e sem liberdade
um profundo sussurro
uma lágrima que condensa no seu núcleo
o berço esquecido
o meu país sem tempo
perdido na solidão das cordas
que amarram os corpos ás pedras frias
estes bolsos rotos
por onde perco as dores a cada passo
que marcam o tempo que não foi
o som que não escutei
eu corro por essas ruas sem sentido
levanto-me das muitas campas onde me sepultei
revejo as minhas vidas passadas
na pele dos peixes vermelhos com que me tocas
e me concedes a verdadeira bênção da inconsciência
vou circunflexo
musical e desassossegado
brevemente existo
na terra por onde já não passas permaneço
mas esse país
conhecer-nos-á pelo nosso nome.







quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Gaveta de Luz


William Blake

Gaveta e luz
que te não abro
para não cegar de vez
Gaveta de luz
onde guardo a brancura
com que pinto este papel a palavras negras
Gaveta de luz
espuma destes dias
mar de púrpura flor
água sonhada
e tantas vezes respirada
Gaveta de luz
nau petrificada
que somente aos corvos pertences
livro do sal e da areia
esta minha terra
litoral de dunas devoradas
vertigem de morder os dedos
o medo visível somente ao entardecer
o silencio lunar do corpo
entregue á mansidão do esquecimento
pétalas de fecharmos os olhos
num precipício perfumado
gaveta de luz
lençol onde termina o sofrimento dos lábios
abertos pela treva oceânica
gaveta de luz
onde nos abraçamos
no momento único
de nos recordarmos até ao fim.



sábado, 10 de novembro de 2007

Despedida


Yves Klein - "Blue Sponge"

A terra tremia e era doce o teu sorriso
Iluminado com a coragem das mães solitárias
De nenhuns filhos
Olhava de lado o teu perfil
As rugas de solidão cravadas na pele
Alimentavam o rosto preto e branco
Alguns cães desenhados na tua boca
O excesso de beleza dos teus olhos
Fotografados na memória para sobreviver
nesse rio quotidiano que me ilumina
Por dentro sei das súplicas que ele me traz
Os sublinhados nestas frases
Perante a indiferença geral
A nostalgia da justiça que era ter-te

Tenho as minhas razões para ser poeta
Para olhar para as flores e para as pedras
E misturar-lhes mar e algum cuspo
E ser o que não sou fora de mim
Consumidor das luzes que trazem a noite
Um sistema de profundidades várias
Onde as palavras se entregam
Á verdadeira revolução que habita esta casa
Estes passos pouco suaves
Em direcção ao nada
Esta desordem
Estes dedos cheios de utopia
Algum sonho de menino assustado
A agitação que se aproxima
O amanhecer do dia primeiro
onde fecho os olhos para te ver
água
poema
rendição
mel da vida
despedida.

Desafio

A Joana Roque Lino da 8ª Edição (http://oitavaedicao.blogspot.com/, passou-me o repto seguinte:
1-Pegar ao acaso no livro mais próximo, com mais de 161 páginas;
2-Abrir o livro na pág. 161;
3-Na referida página, procurar a quinta frase completa;
4-Transcrever na íntegra para o blogue a frase encontrada;
5-Passar o desafio a cinco novos blogues.

Do meu livro:

“Porque a liberdade era o seu pão (este, como dissemos, não era amargo, mas sobretudo doce: uma alimentação quotidiana inexpressiva).

Pier Paolo Pasolini, in “As Ultimas Palavras De Um Ímpio”

Passo agora o mesmo desafio aos seguintes blogues, caso aproveitem a vaga:

http://contar-te.blogspot.com/
http://lagoreal.blogspot.com/
http://perolasdeouro.blogspot.com/
http://ocheirodailha.blogspot.com/
http://www.jacramos.blogspot.com/

terça-feira, 23 de outubro de 2007


Martin Ridley


Estas linhas
cozidas no desespero
da onda que leva à praia o rosto do homem afogado
de negro vestido com a saudade nas algibeiras
o tempo não vivido que passou
o numero da lotaria que lhe calhou
bagos de romã, a vida
enforca o sorriso do sonho na corda do amanhecer
a esperança nestes lençóis de linho amorrotados de luz
os teus braços onde acolhes a ternura
destes promontórios onde o poema abraça o mar
águas onde todos os erros são perdoados
este sal coruja da noite
asas silentes
estas mãos que escrevem para ti
os desastres onde mergulhamos a flor que decide o próximo passo
a pétala que cai sem força para permanecer
agora ascendo no silêncio deste quarto onde me perdi
sou uma pedra impossível no cabo do mundo
permaneço imóvel
espero o V de voo
das grandes aves migratórias que atravessam esta paisagem
e não tenho nome para dizer
da beleza do meu coração
quando dança nas tuas mãos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Notável e profundo




O sal que das tuas asas se desprende denuncia o mar onde adormece a chuva que obliqua fere as teclas do piano minimal
berço de corpos desabitados de amor
descansam desertos de energia
os corações estremecem metodicamente ao atravessar do sangue
a presa e o caçador abraçam-se na derradeira paixão que antecede a morte
as mãos dadas ao suor que destrói para sempre
as ervas daninhas do passado na transfiguração da luz
um presente
uma fuga dolorosa
uma crueldade mimética
absurda oração das mãos que se não dão
um piano neste quarto gradeado
um tumulto nostálgico como um virar de página
o tempo que escorre e afoga o naufrago gota a gota.

Levantou-se
relembrou todas as letras
que dos poemas sabia existirem
e a golpes de azul
desapareceu por entre alquimias
de fumos de cigarros

Notável e Profundo
são as únicas palavras inscritas na sua lápide.


sábado, 13 de outubro de 2007



"Nude in Silence" - Jacqui Faye Michel

Não tão silencioso
que não gostasses que te ouvissem
não tão inteiro
que não preferisses que te partissem
não tão ferido
que não quisesses que te salvassem
não tão escuro
que os teus olhos não cegassem
não tão intenso
que não temesses pela tua segurança
não tão ridículo
que não te permitissem somente a verdade
não tão puro
que não pudesses do nojo extrair a beleza
não tão cortante
que pudessem as facas beijar a tua língua
e por fim soubesses administrar o teu silêncio.

domingo, 7 de outubro de 2007

Sombriamente iluminados


Dali - a persistencia da Memória


Sombriamente iluminados
estilhaçados de luz
com o corpo por acabar
cheios de fantasmas
evitávamos o ar das cidades contaminadas
e buscávamos o nosso suor
e a nossa sede no silencio dos madrigais
onde deambulávamos cheios de letras indizíveis
e dávamos as mãos que não eram nossas
àqueles a quem pertencíamos

Sombriamente iluminados
estilhaçados de luz
com o corpo por acabar
caminhávamos nos telhados surrealistas e
levantávamos voo
relembrávamos estórias
pássaros que passam
que não precisam morrer nem saber mapas
o nosso voo metodicamente
sulcava cada gesto
cada abraço
cada milagre que entre nós
foi o de lágrimas não choradas
porque éramos felizes

Sombriamente iluminados
estilhaçados de luz
com o corpo por acabar
crianças fomos
e do mar fizemos
unicamente a paisagem dos nossos olhos
seara que nenhum desastre podia arrancar
eu sabia as pequenas curvas de cada duna
o teu corpo de água que fluía para o meu centro
eu comia desse alimento e crescia
olhava o sonho antes da tempestade
queimávamos o tempo com pequenas faúlhas
fechávamos os olhos e adormecíamos.
sombriamente iluminados
estilhaçados de luz
com o corpo por acabar.






terça-feira, 25 de setembro de 2007

Não tenho....



Bill Brandt

Não tenho casa sem ser a dos teus cabelos devolvidos ás minhas mãos
Não tenho olhos que não sejam a cegueira dos teus beijos
Não tenho sombra que não seja a luz que diariamente me forneces
Não tenho dores que não sejam as do medo de te não mais encontrar
Não me tenho a mim porque sou teu e nesse perder me achei
Não tenho boca para dizer as palavras que merecias ouvir
E triste estou por me faltar talento e inspiração.



segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Balada Para Uma Ausência


Jack Spencer


De repente tudo parece azul
de um azul profundo
estelar inacessível

desde que nas minhas veias
corra o sangue de ferir
eu digo
este lugar não é para ti
melhor ficarás nos mundos intermédios
onde a terra não treme
onde não precisas da perfeição do exigir
mais uma noite solitária
é o que de mais acolhedor posso oferecer
estas nuvens que passam
restos do teu cabelo
são o algodão e a água que corre
e que te recorda da melhor maneira

O Outono chegou em pleno Verão
plátanos e bétulas
despem-se com ternura e suavidade
preparam as raízes para o silêncio
e sinto o voo das suas folhas
conheço como o elas o chão do desamparo.




quinta-feira, 13 de setembro de 2007



Soa o canto do rouxinol negro
como a bala que fala
queimando de morte o corpo dilacerado
pelo beijo da claridade do ultimo dia
o solo etéreo na boca que não diz
o interprete da minha noite
o rouxinol negro tatuado nesta pele
pedra silente que atravessa o espaço
carrilhão de desenganos
depois o guardião da noite sentenciou-me
e eu fugi através dos ciprestes
que guardam o tumultuoso rio
eu fugi e mergulhei
nas muitas águas dos futuros sonhos
onde habitaremos os nossos corpos regressados do silêncio
eu fugi vertendo a dor nos passos que ardem os caminhos

Devolve-me ás estrelas
porque o amor
é o único milagre digno desse nome

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Uma Gota de Sangue


Mark Ryden

Escrever
é colocar uma gota de sangue
no sangue dos outros e envenená-lo
as palavras projectam-se infectas
saem das mãos do poeta
são jactos primordiais que atingem os outros
e assim o poeta como o perfumista
difunde-se e confunde-se nos odores dos outros
deixa a sua magnólia
e enxerta-se em tudo o que é planta de receber enxerto
o Poeta é um jardineiro
uma ave carregada de pólenes
um peixe pescador encantador de ventos
que sabe congelar o tempo
tempo que parou naquela carta que não enviaste
porque não me conhecias
e agora é tarde
é tão tarde que me perdi
de tanto passar por estas ruelas difíceis
que conhecem o meu nome pétreo
porque o meu nome caiu no chão
e quebrou o derradeiro sonhar do sonho
o poema despedaçado
que goteja venenoso nas palavras possíveis de escrever
porque há palavras que ainda não existem
que são como animais futuros
que habitam a boca dos poemas por escrever
eu digo e sonho
no dizer de todas as minhas vozes de homem multiplicado
eu digo que tal como a metáfora
embala o poema espreguiçando-se em todo o seu amplexo
também o Poeta se prepara para dormir
depois de derrubado pelo seu poema
Poeta vazio de palavras
que volta a ser humano
a alma contida dentro de um rebuçado
um corpo dentro das cidades queimadas
pela distancia de não haver partida
só saudade absoluta
memória lembrança das viagens por cumprir
no teu corpo perfumado pelo sarro marinho
a luz da luz que tudo escurece
este quarto donde acabas de sair com um sorriso infantil
que convoca as lágrimas que chorarei quando te perder.




terça-feira, 21 de agosto de 2007

Poema Directo




Ainda que os teus dedos
não estejam mais ao alcance dos meus
ainda que eu nunca te tivesse dito
que os teus olhos
eram as verdes feridas
que me iluminavam todos os minutos
ainda que só agora o diga
ainda assim abro com terno desespero
esta rua de poesia e saúdo-te
mulher da minha vida
nesta rua em que todas as casas tem o teu nome
e todas as pessoas te conhecem em demasia
para te puderem perder como eu te perdi
ainda que este papel
não seja o lugar
onde sublime possas repousar
eu digo que se houvesse de louvar-te
buscar-te –ia no vento porque sou nada
e porque tudo é pouco
para abraçar o impossível
e esconder as minhas dores.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007


Josef Koudelka

Guardo-te no bolso

dobro em quatro este papel

com as palavras que me saltam da pele

as notas dos dedos de um pianista

guardo-te no bolso

posso mesmo dizer

que tenho um coração no bolso

e um buraco no coração

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Primeiro Dia



Deveria cortar as mãos
para não desenhar as palavras erradas
o perigo é esse
esquecer-me de ti
numa destas noites mal dormidas
deixar de tropeçar na presença da tua ausência
e ser acusado do crime de silenciar a tua memória
o poema que escrevo desde o primeiro dia.

terça-feira, 14 de agosto de 2007


Klimt

Vejo que passas como um fragmento luminoso
na tinta desta caneta incandescente
nesta letra mal acabada
vejo que passas por mim
que sou A de árvore
S de sombra que se projecta na parede negra de xisto
sinto que passas
e quebras pelo centro a indiferença destes dias
cheios por esta profissão iníqua de ângulos mortos
vejo que passas silenciosamente
como num filme de Antoinioni
desarrumada de luz
e de pulseiras de cristais translúcidos
a espuma dos teus passos
é o salário bastante para os meus olhos operários
a cintilação da tua voz
água para a minha sede de árvore
e não conheço outra verdade
que me faça ser esta raiz.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007


Dora Maar por Man Ray


Cruzo as mãos
fecho os olhos com ferocidade
procuro a fonte das palavras não pronunciadas
é ela a minha boca
a minha água no deserto dos surdos
boca que alimenta outra boca
um pensamento feroz
um sentimento arrebatador na minha cabeça coração
e conspiro no verde madrigal que foi a minha infância
recordo a textura das árvores
onde sonhei pela primeira vez para escapar à morte
e estou nas folhas perenes dessas árvores
feitas de vento subtil
que soprava pelos ramos dos meus dias iniciais como um milagre
eu escrevia os primeiros poemas
relembrava que te iria encontrar nas palavras
no amor que nunca ousei dizer
porque o amplexo do amor não cabe nas palavras
mas eu escrevia por dentro
como a aranha que tece uma teia para os seus filhos
eu escrevia a minha casa na noite habitada pelo teu nome.


segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Gena



Mais algumas palavras
antes que essa lágrima
desapareça no anonimato do chão
mais algumas palavras
ou uma arma em punho
um estilhaço de tinta fresca
a mão que assina este papel…

B.I.


Dinis Albano Carneiro Gonçalves

Deixaste que o silêncio
invadisse esse bilhete de identidade
até apagar da fotografia todos os teus sonhos
abriste o coração a todos os desastres
consegues agora ver o lugar certo do teu caber…

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A Casa


Vincent

Atei os meus lábios ao teu destino
começam assim certas histórias a duas bocas
alguém mergulha as mãos na água e constrói uma casa
sonha e estremece ao som delicado das ondas
dos profundos lugares das paisagens marítimas
começam assim certas histórias a duas bocas
os lábios relembram, alimentam-se
apavoram-se no medo profundo do amor
e os corpos habitam-se de energias luminosas
as horas passam e nada termina
o coração é dono do tempo e dos compassos irracionais das línguas
que dizem palavras que não chegam para alimentar a ave que nos recebe a nós
e nós estamos unidos na emoção primordial
dos primeiros dias da criação do mundo
e colocamos tijolos e madeiras várias
sangue e saliva e lágrimas
e construímos a nossa casa a duas bocas.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Tango


Cristina Bergoglio

Aquela mágoa não era dor de ouvidos que escutaram um “não te amo mais”
Aquela mágoa estendia-se ao comprido por debaixo da língua dos mártires que pronunciaram o teu nome que já não era amor no coração dos desesperados
É terrível o tempo de não saber voltar à música de dois corações livremente amordaçados um ao outro, dois de um, um de dois.


quinta-feira, 26 de julho de 2007

Notas para não esquecer


fotografia de Quark

Rever os modos de me aproximar à morte
deixar-me mais tempo nos teus braços
ser a ferida que se oferece ao teu corpo
congelar-me nos teus olhos e esperar que ardas.

terça-feira, 24 de julho de 2007



Deixo a cadeira
onde se sentava a imagem pura de minha mãe
parto sem vontade de partir
as fotografias amontoadas pelo chão…
a cópia debotada de um quadro de Vermeer
“Rapariga Com Brinco De Pérola”

Confusas são as coisas da terra
Para as mãos simples do pescador
Que soletra baixinho
Rapariga com…
brinco de água
minha mãe de água
a ti regresso silencioso e liquido
nas tintas dos quadros de Vermeer
nesta praia repleta de astros
que são as minhas mãos quebradas
pela distância de te não pertencer.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

5 livros importantes...



Respondendo ao desafio lançado pela JLR, aqui ficam;

"Os Maias" de Eça de Queiroz (Obrigado Professor Monteiro)
"Cem Anos de Solidão" de Gabriel Garcia Marquez
"Siddhartha" de Hermann Hesse
"Albas" de Sebastião Alba
"Obra quase Incompleta" de Alberto Pimenta
"

quarta-feira, 18 de julho de 2007

A tua mão suavemente...


Jeanne - Amadeo Modigliani

Deixar Correr as lágrimas
percorrer-nos o rosto com enorme gentileza
é escrever a tinta invisível a visível liquidez das palavras claras
o céu é como se chama o lugar perdido que reflecte a tua pura presença
a delicadeza do teu gesto
a tua mão no meu cabelo suavemente
é o segredo que inclina a água onde navegamos
e não tenho palavras nem mais segredos
para dizer á raiz que o meu corpo é o teu corpo
e a minha sede é o rio por onde correm essas lágrimas
tal é a flor da flor
o gesto terno de um olhar
A erva mais alta no campo mais verde
o principio das coisas
o exemplo estrutural da criação
é este o caminho que percorro
um caminho de milagres e poços negros
e trago o teu gesto na profundidade ampla do meu coração
que bate aqui e ali como a vai vem das vagas nocturnas
sem nenhum agenciamento prévio
inventamos aquela cola indestrutível
que une as coisas permanentes
a estrutura milagrosa da teia de aranha
ou a voz dos plátanos beijados pelo vento norte.
por isso peço o impossível
que te levantes mais uma vez
e na delicadeza do teu gesto
eu sinta ainda a tua mão no meu cabelo suavemente.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O que perdi
diz-me o que perdi
tudo o que tinha sem suspeitar
e perdeste sempre?
sim, perdi sempre.

quinta-feira, 12 de julho de 2007



A árvore vermelha por Piet Mondrian

A estrada coberta de neve
a árvore coberta de angustia
curva-se como eu perante o rigor deste Inverno
mas subitamente estou vivo e ardo, sim estou vivo
e olho-te árvore que não vens nos livros
olho-te só eu e compreendo-te só eu.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Geometria dos Possíveis


Podes ser o invisível
Dos objectos inverosímeis
Podes ser a palavra em Dreyer
Que abre os olhos aos vendados
Fulmina de fé os incrédulos
Carrega de luto as mulheres de branco

Ilumina-me
Faz-te luz no meu abismo
Fascina-me e transfigura-me.

Pena capital

Pena capital para os humanistas
Pena capital para os sem partido
Pena capital para os que não têm trabalho
Pena capital para os "inadequados"
Pena capital para os incorruptos
Pena capital para os que sentem
Pena capital para os homens livres
Mas primeiro
coração algemado
coração encordoado
coração esmagado
coração rasgado
agora sim;
Pena capital

terça-feira, 10 de julho de 2007




fotografia: Rafael Borges


Sou o vento
que no dia 3 de Julho pelas 11 horas e 47 minutos
levou os teus cabelos a caprichosamente cobrirem o teu rosto
nesse preciso momento lembraste-te de mim…

Raíz

Vou pela estrada recortada a castanheiros
a estrada molhada por este dia cinza interior
vou com o estrondo das ondas do mar dentro de mim
vou até onde termina o caminho
até onde não existe mais luz esperarei
para te pertencer
Raíz.

segunda-feira, 9 de julho de 2007



Sou livre!
Como?
Sou Livre!
Você é doido
Afirmou o meritíssimo juiz perante o homem condenado a 25 anos de prisão.
Já reparaste no canto dos pintassilgos em Abril?
Sabes o que são pintassilgos?
E as Variações Goldberg conheces?
E a ti próprio conheces?

domingo, 8 de julho de 2007


Caspar David Friedrich - Monk By The Sea

Exercito a caneta
Como o operário o berbequim na parede dura
Exercito-me para o nada
Sou um bruto que aprecia as flores e os canários verdes
Arregaço as mangas
E olho-me no espelho branco de uma folha de papel
Uma árvore a minha infância
A minha pátria de palavras
A minha pátria cega e perturbada.

sábado, 7 de julho de 2007

Direitos Humanos


Edvard Munch




O amor negado
O amor soterrado
O amor cuspido
O amor lambido
O amor veneno
O amor cão
O amor erro
O amor atraiçoado
O amor estilhaçado
O amor nado morto
O amor verdade

Amo-te amor
Amo-te… eu
cão.

quarta-feira, 4 de julho de 2007



Nenhuma palavra para esconder a morte nos teus olhos
Nenhum milagre possível sobre a água dura gelada
Nenhum líquido terrestre sustentará o teu dorido corpo
Nenhum subterfúgio para evitar o grito infame

Habitarás o interior do meu coração nocturno
Todos os dias que me faltam para chegar até ti.


Sou vários homens
comprimidos num só homem

Bebo para morrer de sede

quarta-feira, 27 de junho de 2007

As mães

As mães estão nas lágrimas azuis que os filhos secretamente choram por não lhes puderem valer como elas sempre fizeram por eles, por isso a divida é eterna e impagável. Os filhos choram o sofrimento das mães mas o sofrimento das mães é desumano e incomensuravelmente maior por não puderem mais cuidar deles. Os filhos são todo o sentido da vida das mães. As mães criam-se em redor dos filhos e são as muitas palavras que eles falam, estão em todas as sílabas das suas metáforas. As mães sãos as coisas mais belas que os filhos carregam e que depois são oferecidas a outras mulheres mães sem eles saberem, sem se aperceberem que são um presente da primeira mãe para a mãe mais nova. A mãe transmite-se de filho em filho, da primeira mãe até à mãe derradeira. Os anjos são feitos da carne das mães, mesmo daquelas menos subtis. E os filhos choram outra vez como quando nasceram quando as mães morrem. Chamam por elas em gritos primordiais, sanguinários. Choram porque perderam os olhos da cara que os ensinaram a encontrar o amor e a respiração com que diariamente acordam. Os filhos sem mães tem que aprender outra vez a respirar o ar que todas as manhãs ascende dos pulmões ao seu coração magoado. Assim é há muitos anos sem que os filhos se apercebam. A mãe olha o filho pela última vez quando o amor e a dor se fundem na matéria sensacional das estrelas num abraço superiormente profundo, é a primeira vez que alguns filhos navegam neste mar. O filho recusa partilhar a dor da mãe, não consegue ver nada além da brutal desumanidade, a total ausência de Deus naquela situação esmagadora. Mas a mãe tem os olhos abertos e abre com as suas lágrimas os olhos do filho. O filho não sabe porque chora e não nota que as suas lágrimas são azuis pela primeira e ultima vez. O filho pensa que a vida continua mas por vezes quando acorda e se vê ao espelho a sua pele contem reflexos de azul, e há dias sem nuvens em que ele consegue finalmente compreender a cor do céu, a cor de todas as mães.

Nascer

Hoje e aqui
sair de mim
entrar por ti
SER