segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Uma Gota de Sangue


Mark Ryden

Escrever
é colocar uma gota de sangue
no sangue dos outros e envenená-lo
as palavras projectam-se infectas
saem das mãos do poeta
são jactos primordiais que atingem os outros
e assim o poeta como o perfumista
difunde-se e confunde-se nos odores dos outros
deixa a sua magnólia
e enxerta-se em tudo o que é planta de receber enxerto
o Poeta é um jardineiro
uma ave carregada de pólenes
um peixe pescador encantador de ventos
que sabe congelar o tempo
tempo que parou naquela carta que não enviaste
porque não me conhecias
e agora é tarde
é tão tarde que me perdi
de tanto passar por estas ruelas difíceis
que conhecem o meu nome pétreo
porque o meu nome caiu no chão
e quebrou o derradeiro sonhar do sonho
o poema despedaçado
que goteja venenoso nas palavras possíveis de escrever
porque há palavras que ainda não existem
que são como animais futuros
que habitam a boca dos poemas por escrever
eu digo e sonho
no dizer de todas as minhas vozes de homem multiplicado
eu digo que tal como a metáfora
embala o poema espreguiçando-se em todo o seu amplexo
também o Poeta se prepara para dormir
depois de derrubado pelo seu poema
Poeta vazio de palavras
que volta a ser humano
a alma contida dentro de um rebuçado
um corpo dentro das cidades queimadas
pela distancia de não haver partida
só saudade absoluta
memória lembrança das viagens por cumprir
no teu corpo perfumado pelo sarro marinho
a luz da luz que tudo escurece
este quarto donde acabas de sair com um sorriso infantil
que convoca as lágrimas que chorarei quando te perder.




terça-feira, 21 de agosto de 2007

Poema Directo




Ainda que os teus dedos
não estejam mais ao alcance dos meus
ainda que eu nunca te tivesse dito
que os teus olhos
eram as verdes feridas
que me iluminavam todos os minutos
ainda que só agora o diga
ainda assim abro com terno desespero
esta rua de poesia e saúdo-te
mulher da minha vida
nesta rua em que todas as casas tem o teu nome
e todas as pessoas te conhecem em demasia
para te puderem perder como eu te perdi
ainda que este papel
não seja o lugar
onde sublime possas repousar
eu digo que se houvesse de louvar-te
buscar-te –ia no vento porque sou nada
e porque tudo é pouco
para abraçar o impossível
e esconder as minhas dores.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007


Josef Koudelka

Guardo-te no bolso

dobro em quatro este papel

com as palavras que me saltam da pele

as notas dos dedos de um pianista

guardo-te no bolso

posso mesmo dizer

que tenho um coração no bolso

e um buraco no coração

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Primeiro Dia



Deveria cortar as mãos
para não desenhar as palavras erradas
o perigo é esse
esquecer-me de ti
numa destas noites mal dormidas
deixar de tropeçar na presença da tua ausência
e ser acusado do crime de silenciar a tua memória
o poema que escrevo desde o primeiro dia.

terça-feira, 14 de agosto de 2007


Klimt

Vejo que passas como um fragmento luminoso
na tinta desta caneta incandescente
nesta letra mal acabada
vejo que passas por mim
que sou A de árvore
S de sombra que se projecta na parede negra de xisto
sinto que passas
e quebras pelo centro a indiferença destes dias
cheios por esta profissão iníqua de ângulos mortos
vejo que passas silenciosamente
como num filme de Antoinioni
desarrumada de luz
e de pulseiras de cristais translúcidos
a espuma dos teus passos
é o salário bastante para os meus olhos operários
a cintilação da tua voz
água para a minha sede de árvore
e não conheço outra verdade
que me faça ser esta raiz.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007


Dora Maar por Man Ray


Cruzo as mãos
fecho os olhos com ferocidade
procuro a fonte das palavras não pronunciadas
é ela a minha boca
a minha água no deserto dos surdos
boca que alimenta outra boca
um pensamento feroz
um sentimento arrebatador na minha cabeça coração
e conspiro no verde madrigal que foi a minha infância
recordo a textura das árvores
onde sonhei pela primeira vez para escapar à morte
e estou nas folhas perenes dessas árvores
feitas de vento subtil
que soprava pelos ramos dos meus dias iniciais como um milagre
eu escrevia os primeiros poemas
relembrava que te iria encontrar nas palavras
no amor que nunca ousei dizer
porque o amplexo do amor não cabe nas palavras
mas eu escrevia por dentro
como a aranha que tece uma teia para os seus filhos
eu escrevia a minha casa na noite habitada pelo teu nome.


segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Gena



Mais algumas palavras
antes que essa lágrima
desapareça no anonimato do chão
mais algumas palavras
ou uma arma em punho
um estilhaço de tinta fresca
a mão que assina este papel…

B.I.


Dinis Albano Carneiro Gonçalves

Deixaste que o silêncio
invadisse esse bilhete de identidade
até apagar da fotografia todos os teus sonhos
abriste o coração a todos os desastres
consegues agora ver o lugar certo do teu caber…

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A Casa


Vincent

Atei os meus lábios ao teu destino
começam assim certas histórias a duas bocas
alguém mergulha as mãos na água e constrói uma casa
sonha e estremece ao som delicado das ondas
dos profundos lugares das paisagens marítimas
começam assim certas histórias a duas bocas
os lábios relembram, alimentam-se
apavoram-se no medo profundo do amor
e os corpos habitam-se de energias luminosas
as horas passam e nada termina
o coração é dono do tempo e dos compassos irracionais das línguas
que dizem palavras que não chegam para alimentar a ave que nos recebe a nós
e nós estamos unidos na emoção primordial
dos primeiros dias da criação do mundo
e colocamos tijolos e madeiras várias
sangue e saliva e lágrimas
e construímos a nossa casa a duas bocas.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Tango


Cristina Bergoglio

Aquela mágoa não era dor de ouvidos que escutaram um “não te amo mais”
Aquela mágoa estendia-se ao comprido por debaixo da língua dos mártires que pronunciaram o teu nome que já não era amor no coração dos desesperados
É terrível o tempo de não saber voltar à música de dois corações livremente amordaçados um ao outro, dois de um, um de dois.