sábado, 17 de maio de 2008

Berlindes


"Snooze" - Ronald Nowak

Sabe bem escrever
é como se estivéssemos vivos
e com uma faca de palavras cortássemos a morte pela raiz
numa caligrafia de pontos magnéticos
para devorar os dias e as noites nos intervalos da melancolia
de oriente para ocidente
devemos escancarar as grandes janelas do mar
para que tu chegues como água purificante
e eu seja rio que possa eternamente desaguar
nos teus dedos fios de chuva
gotas de sonho na minha pele
alguma coisa de beijar
e eu fosse despido dos embrulhos da estupidez
num tumulto de profundezas astrais
a poesia como um gelado quente
no chocolate das tardes que nos envolviam
eu subia pela cauda dos cometas
adormecia
respirava no infinito
brilhava na serenidade de ser eu
mergulhava nos muitos sonhos das coisas dignas
que minha mãe me ensinou
perfurava até à carne na pressa de ter um corpo
onde pudesses habitar um nome sem lágrimas
uma vida sem castigo
e via-te passar com os meus sonhos nos teus olhos
na cegueira de abençoar o mundo com um poema
que desse a luz à noite
a treva à madrugada
um precipício à boca
e mais alguns berlindes para os olhos do coração.

domingo, 11 de maio de 2008

Os Dias Erguidos


Man Ray -"Negative Blonde"

Contrato com o oxigénio
que pulsa por dentro das roseiras bravas
um campo onde o grande maquilhador, o tempo
se esqueceu de matar
os passos para o perturbante silencio
mas antes disso temos de dizer qualquer coisa
para que o baptismo seja mais real
o sangue mais puro
o olhar mais duradouro e sobretudo para que possamos voar
por dentro um do outro
até nos perdermos um dentro do outro
nessa hora lenta e queimada
como as nuvens que transportam o primeiro carinho e outras palavras de berço
veleiros acordados pelo luar do coração
esses pequenos barquinhos nas mãos do mar
recolhem-me á praia
à casa de verde espuma
e estou pronto para me levantar
para ser aniquilado pelo vento que se escreve e multiplica
com uma espiral de ternura por dentro
até que de dentro apareça e fora ressuscite
o que morreu perplexo e que agora brota
num convite à insegurança do belo

Se estas mãos pudessem
Escrever o teu frágil nome
Eu esperaria por essa tempestade
na límpida madrugada dos dias erguidos.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Fogos


"Nocturne iin Black and Gold" - James Whistler


A interminável janela
papel branco daquilo que está vivo
na larga avenida das horas que passaram
onde o veneno do tempo não nos poderá cegar
o interior dessa marginal
a boca aberta para a grande fome do dizer
e nós falamos esta linguagem
que ninguém ensinou
amamos as margens
dos fogos por atear
aos campos de sermos nós
e as manhãs começam
quando a escuridão atravessa os relógios do fim da tarde
e fluímos para a brancura da palavra

bem-vindos os que desembarcaram na sombra
onde lançámos as nossas frágeis âncoras
e ardem como nós
no coração que governa o pavor do mundo.

Completamos os nossos destinos
Como os dedos solares
no sorriso do acordar da terra
trago-te por baixo de um milagre
que não me pertence
um corpo surpreendente
de olhos proibidos na acendida penumbra.

domingo, 4 de maio de 2008

Poderia subitamente...


Odilon Redon - Strange Flower, Little Sister of The Poor

A palavra é o espelho
rosto a rosto
a viagem perfeita das línguas essenciais
a ascensão e a queda
no copo do vinho que equilibra a sombra
que por dentro de nós é hora de todos os minutos
adiante a esperança não está naquele lugar profundo e estrutural
apesar de conhecer pela sede
os poços onde vibra a respiração das madrugadas
do animal que se contorce na teia do ideal
realidade que foges sempre sempre
como o réptil assustado pela sombra do morrer do dia
não sou mais que um arabesco errante à procura da palavra nua
o poema cru vivificado pela alegria da luz contagiante
um bilhete postal
uma pedra ao lado do teu nome
veia do poema
luminosa areia
efémera como o gotejar do tempo
eu sou o arco e a flecha desse tempestade que não conheceste
um presságio como uma futura ferida
eu sou a impossibilidade e o perfume da escolha
o tangido alento que a insónia promete
um descanso merecido nos confins do mundo
eu deambulo ente a luz e a luz e por dentro da treva da luz
como um cão ou um gato melancólico
trabalho no deserto a minha existência de papel
poderia enlouquecer subitamente
se não existisses quando fecho os olhos.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Grito



Aurora - F.W. Murnau

Morre-se muitas vezes e ressuscita-se poucas e cada vez que se mergulha perde-se um bocado de voz e quando de novo tornamos à superfície já não somos os mesmos somos menos temos menos que matar menos que perder e já pudemos acabar no para sempre que é o horror do dia a dia Porque a noite é onde se respira melhor e não precisamos de aturar gente próxima do chão gente sem asas gente de cócoras que não sabe o que é um precipício a esperança acontece de noite a noite expulsa todas as sombras a desordem da dualidade e a contradição a noite é um respirar a água à sua mais pura transparência a água que dá cor aos olhos a água pura onde os barcos se sentem seguros o Homem é uma coisa de nocturno espírito é uma coisa tremenda para lá do concavo infinito das noites mais claras a nossa casa é feita dessas muitas estrelas sem senhorio dessas imensas luzes olhos do gigante a quem não conseguem cegar somos nítidos absolutamente transparentes subitamente somos para sempre somos o dentro daquele lugar primordial que nos imobilizou quando nos olhámos pela primeira vez somos os nossos nomes verdadeiros não aqueles que nos deram por medida no baptistério de uma igreja mas aqueles outros que só de luz se pronunciam aquela luz que torna a noite negra e permite que tudo vejas pelos meus olhos porque para olhar só preciso de ti
um pedaço de infinito
na ponta desta caneta
um grito.