quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Mas...


Wojtek Kwiatkowski
Estou aqui
E ouço o bater de asas do meu anjo caído
Canto a água branca e estrutural
Com que beijo a boca da terra
A raiz que sonha a flor
Um poema na algibeira do tempo
A iluminação da primeira noite do mundo
Uma palavra no crepitar da memória
Eu guardo cá dentro a ascensão destas coisas invisíveis
Percorro-me pelas veias e os profundos canais das minhas mãos
Que nada prendem
Que nada sabem reter
Fora das horas mostradas pelos relógios
Sobrevoo os telhados onde procuro o meu verdadeiro nome
Minuciosamente escolho a primeira letra
Que escreveram na pele deste homem
Minha mãe
Um tesouro como o segredo de bagos de romãs
Eu não faço parte
E não sei para onde vou
Mas estou aqui e insisto na fúria mínima da palavra
E na violência dos jardins incendiados pela memória
Onde uma criança nasce de uma rosa altiva
E de um perpétuo desencontro
Um milagre para assustar as órbitas dos olhos cegos
Uma ferocidade translúcida no quebranto do corpo
Um ritmo na carne batida contra os búzios
Eu sou um pedaço de língua bifurcada
Uma caneta anónima
Uma luz trémula na contradição das coisas vivas
Não faço parte
Mas sou.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Carta a Um Amigo


Caravaggio


Hoje dei comigo no teu funeral a falar de vendas de automóveis. Pelo canto do olho, por detrás dos óculos escuros, observei fugazmente uma rapariga que outrora tinha desejado e continuei a falar de automóveis e do terceiro AVC do meu primo Carlos que apesar de tudo continuava a fumar com todo o prazer.
E no entanto, uns metros adiante baixavam a tua urna para a escuridão sufocante da terra. Os teus filhos comovidos choravam para dentro e para fora, com a cabeça baixa de quem fora inexoravelmente derrotado. Eu continuava a falar com o meu interlocutor, que me mostrou a carteira aberta com a listagem de todos os medicamentos que lhe deviam dar caso surgisse o 4.º ataque. E que pensarias tu de tudo isto?
Pouco importa. Ficarias contente por lá estarem os teus amigos e mais alguns hipócritas tragicamente comovidos com a miséria da morte alheia. Quando te vi a semana passada, agrilhoado aquela cama de hospital não pensei que pudesses partir tão breve. Agora é noite e uma luz mais se acendeu ao pé daquelas outras que já havia baptizado com os nomes dos amigos que jamais verei. Eu sei que não precisas de mim para dizer do alto exemplo que foi a tua vida e que agora é só memória. Os teus filhos puros e fortes dos quais recebi a bênção de ser amigo. Sempre foste livre e a tua liberdade nunca prendeu ninguém, nem mesmo os cães que sempre te compreenderam à primeira ao contrário de alguns. Eu hoje agradeço-te profundamente por todas as mudanças que em mim fizeste nascer. Da importância de amar a terra secretamente, do êxtase de ter uma vinha cuidada à tua maneira, arte viva diriam agora alguns. Nunca disseste mal de ninguém e razões para isso não te faltariam concerteza. Perdi aquele abraço forte como uma montanha e aquele sorriso franco e aberto que de presente sempre me ofereceste. Agora carrego também a tua sombra, mais uma a juntar à noite grande das ausências. È uma merda a morte, e tudo o mais que possam dizer são grandes tretas politicas, boas para determinados círculos eleitorais dos quais não sou eleitor.
Não mais verei o brilho tão nítido dos teus olhos castanhos, a limpeza dessas mãos que quebravam os ímpetos da natureza e dela faziam outra natureza. Mas o teu nome está inscrito na perfeição das primaveras vindouras e no vento sem destino que nos beijará eternamente quando por nós chamarem todos os poemas.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008


Para ver um barco afundar
É só preciso ter um oceano nos olhos
E eu tinha tudo para escapar
Um coração perfeito
Um fato onde cabia
O lugar certo metodicamente alinhado
Onde os naufrágios eram improváveis
Mas o nosso lugar pertence à cidade futura
Onde escreverei o regresso dos teus passos
Num perder de lábios molhados de luar
E uns braços razoavelmente feridos
de te não esquecer.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Luíz



A Srª. Miséria bateu à tua porta
Calçava sapatos vermelhos
E não pronunciava as vogais com correcção
Estendeu-te um livrinho minúsculo de orações
Mas tu sem coração no lugar certo
Não poderias torcer o nariz à noite
Nem dançar essa valsa obliqua
Sem o teu fantasma
Poderias viver mais mil anos
E nunca enlouquecerias
Nem encontrarias o teu lugar
O teu fato estaria sempre amarrotado
E a braguilha sempre aberta

Uma esmolinha?



quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Poema Para Se Dizer Em Voz Alta


"Os Bêbados" - José Malhoa

Abre bem a boca

Marca a página e começa
Ilumina-te de vagabundo
Vai para o telhado
Acorda a terra que dorme profundamente
Lança a corda ao tempo
o teu inimigo
Sobe a escada devagar
Acende de cintilações
Os teus olhos verdes de cegueira
Apruma o teu vestido
Veste a pele do menino
Bebe a água do mar que te chega ás mãos
Prova o sal e vê de onde és
Chama por ti próprio
Conhece o teu fantasma
Despe as roupas
Entra devagar nessas águas,
Flutua como se fizesses amor pela primeira vez
Deixa os ossos pairarem no vazio
Fecha as pálpebras
Olha para dentro até que as lágrimas cheguem
E aponta-lhes o dedo
Aos astros e ao grande imprevisto
Arde
E podes agora começar a falar
Identifica-te uma vez que não és só cinzas
Nem pó de estrelas
Deita fora a caricatura
Fala
bate-lhes forte e vigorosamente
Cabeceia-os
Deixa-os doridos
Dormentes com fezes nos fundilhos
Vês como são mais porcos que os porcos?
Foje deles
Incendeia-os

Em tudo o que dorme e respira
Não o sabias?
Ora toma!
Fecha a boca
E vai dormir.