sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Auto quase retrato


Edward Hopper - "Nighthawks"


A musica que me acolhe ao amanhecer
é a do cheiro luminoso da tua presença
a minha fragilidade escreve-se
na penumbra que anuncia a tua partida
e no terror da ausência infinita
com que o ceifeiro negro nos ameaça a cada dia
a viagem faz-se também aqui
neste sitio onde te recebo
lençol extremo da ternura
que por vezes oculto
amarga vitória de palavras não pronunciadas
eu sou a contradição
e milhares de anos de culpa judaico-cristã
um pecado no lábio mordido pelo beijo
um silencio que espera o anjo
que nunca conheci
porque não sei o nome
que todos os dias digo incorrectamente
os amigos que partiram
e deixaram a casa em ruínas
a cidade queimada pela ausência
ascendo agora por sobre a terra
onde a luz nunca se apaga
habito na sombra estrutural
dos arquivos do tempo que nos resta
reconstruo e destruo os minutos
do que dissemos e fizemos
sou a gota que alimenta
a garganta do homem no deserto
o viajante que adormece na tua cama
e nocturno se esconde no teu corpo.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Movimento


O vento levar-nos-á
como no cinema de Kiarostami
pelas margens solares dos trigais
dourados fios dos teus cabelos crepusculares
janela colorida de promessas
sonho e sonho abraço do sonho
as cidades que de ti partem
este poema que partilho
com o cão sem dono e sem liberdade
um profundo sussurro
uma lágrima que condensa no seu núcleo
o berço esquecido
o meu país sem tempo
perdido na solidão das cordas
que amarram os corpos ás pedras frias
estes bolsos rotos
por onde perco as dores a cada passo
que marcam o tempo que não foi
o som que não escutei
eu corro por essas ruas sem sentido
levanto-me das muitas campas onde me sepultei
revejo as minhas vidas passadas
na pele dos peixes vermelhos com que me tocas
e me concedes a verdadeira bênção da inconsciência
vou circunflexo
musical e desassossegado
brevemente existo
na terra por onde já não passas permaneço
mas esse país
conhecer-nos-á pelo nosso nome.