quinta-feira, 26 de junho de 2008

Cicatriz


"The Chemical Of Us" - Frank To

Escrever para a escuridão
é um ofício de luzes
e nós continuamos
à procura do sagrado dos dias
ou do chicote do amor
do inferno da graça
entre a permanência e a destruição
um movimento intenso para um nascer
um sentido para fora
uma contracção
um sentido como uma rosa altiva
uma boca metódica conceptual
uma flor de violenta paisagem
onde se presume a ausência da sombra
uma ilha desaparecida na plataforma do tempo
e uma canção para abraçar os extremos
a humanidade do teu rosto caído
essa grande cidade perfeita
como um talher que corta com simplicidade o meu peito
num piscar de olhos como um relâmpago
para ferir a carne desamparada
no cimo dos mais altos montes
a cor mais intensa da brilhante cicatriz.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Pássaro Azul




O que brilha mais não é o teu dinheiro
podes deixá-lo à porta antes de entrares
aqui o que podes encontrar é o canto do pássaro azul
e isso não podes depositar em nenhuma conta bancária.

domingo, 22 de junho de 2008

Desaparecidos


"Remembrance" - Bill Viola

As asas começam a viagem
do voar dos dias futuros onde tudo perderemos
a crueldade da memória é um tesouro
vincado no rosto que diariamente aprofunda
o abandono da casa assombrada onde pernoitamos
um edifício destroçado tamanho do coração
é tudo o que podemos oferecer
à língua amarga dos desaparecidos.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Outra Canção


Marnix De keukelaere

Outra canção para o ouvido triste
Outra vontade para o coração
Um violino para o lugar mais fundo
Que se chama tempestade
Uma algema para as asas do pássaro naufragado
Uma bala para a mentira
Uma caverna de laminas para o sangramento da solidão
E uma voz que não seja uma sombra de rasgados destinos
Tu conheces-me pelo fogo
Porque me viste crescer ao lado das magnólias de espuma.
Viste-me arder profundamente
E isso não cabe em nenhum papel.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Godot





O poema começava com os lábios fechados
e a língua cosida ao coração
este ainda batia ao compasso das promessas por cumprir
a noite deitava-se ao lado do corpo insone
os dias acorrentavam-se ás horas das perturbadas penumbras
quando o sonho saía com o seu cão para o xixi matinal
Depois calçou os sapatos da memória
e esperou que uma dor o despertasse para a permanecia entre os vivos
e que do absoluto naufrágio
muito haveria ainda a perder
que não fosse só a pele e os ossos
do seu nome fictício.

domingo, 15 de junho de 2008

Estrelas


"The Dark River To Antares" - Maximo Ruiz

Os melhores dias afundados na medula do tempo
as ruas interiores sob as escondidas paisagens nocturnas
a viagem e o convite à viagem
as margens abertas no dentro de um ventre
o húmus primacial feminino
um deus na tonalidade do vento
que arrasta para a parábola a ferida
um corpo revelação para animais famintos
a ocultação do anunciado
o reencontro por entre flocos de neve perdidos
sob a mesa do olhar senta-se a cúpula celeste
A plenitude da noite deitada no esquecimento
do teu sorriso
puros fragmentos de luz
os teus olhos
estrelas…

quinta-feira, 12 de junho de 2008

um


Sandro Botticeli - St. John Head

Acordo para o sol
e sinto a sombria ausência dos amigos
cujas asas se dilataram em relembrado naufrágio
na mesa ardida sob a clepsidra do tempo
os rostos fitavam-se na inquietude da partida
o vinho selava ou abria a ferida
iluminava pela última vez
o falso lugar onde pernoitávamos
um dia perdemo-nos por aí
nos porquês da escadaria sem degraus
escorregámos inúteis
à procura de melhor desastre
já não os ouço
e deixámos de ser um

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A Cidade Futura


Nicole Wong - "City Shadows Diptyche"

Habitável brancura
A cidade futura
Onde inventamos a raiz de sermos do chão até ás nuvens
Capazes de um precipício onde cabe inteiro o nosso nome
mar onde melhor se escuta o obscuro silencio em que nos refugiámos
cinzas dos dias de lento amanhecer
os trabalhos mínimos dos olhos levantados na crispação do sonho
uma artéria por onde as crianças desaguam na ternura de suas mães
uma colcha para estender o amor por sobre os campos de mágoa
um pássaro de voo incandescente desperta a febre
num corpo frágil arrancado ao turbilhão do sonho
agora as mãos aproximam-se do rosto ávido de espelhos
um navio flutua na imensidão da noite
estamos sós
nas águas profundas que fazem de mim uma cintilação
e de ti uma faca para esculpir um segredo na leve poeira astral
nome para cortar a escuridão do mundo
e dar o olhar subtilmente azul
à palavra liberdade.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Pequenos Passos


Alexander Gardner

Abriu-se a porta
para a brevidade da luz de imaginar o mundo
e a demência do sonho
propagou-se pelas letras grandes com que se escreve ausência
na largura da espuma dos dias
reconheço a lua que amadurece a noite
e o braço luminoso da madrugada
no contínuo das horas de branco vestidas
uma veia essencial é o único bem que pudemos carregar
enquanto a vida escorre pela garganta do tempo
preso à derradeira corda
nua Imagem obscura que tornas e partes
espelho que talha na sua imagem
o gesto que alimenta a escrita
não falo de mim
mas da paisagem eterna onde a poesia acontece ferozmente
das janelas miraculosas onde se esperam as palavras que partem
para a alimentação do poema
e o tempo com o seu corpo incandescente
de horas veementes onde se pode encontrar a raiz
de uma a casa habitada pela loucura
não mais que serenidade e musica redimida pelo âmago das coisas
por dentro de tudo num movimento direccionado a tudo
Mas o que existe não é senão um punhal incendiado de abandonos
um salto para escapar ao esmagamento do peito
mãos para a profundidade do sonho
e um rosto imenso ferido pelas ruas em que não passas
chamas-te esperança e nunca te encontrarei.

terça-feira, 3 de junho de 2008

A deus



Para Ana Aires

Tudo o que não fossem as horas pesadas de te ires embora
para fazeres corpo com as nuvens
e seres chuva cedo demais precipitada...